15 de set. de 2011

A chuva na horta do Nordeste

O programa de implantação de cisternas no semiárido do Nordeste pode dar melhores resultados do que os quase R$ 7 bilhões previstos para a transposição do rio São Francisco.

A eclosão da violência parecia iminente quando quase 1.500 camponeses famintos invadiram a pequena cidade de Ouricuri, no oeste do Estado de Pernambuco. À ameaça de saque se contrapunha a polícia disposta ao combate. Era o ano de 1993 e a seca já durava três anos no interior do semiárido do Nordeste. As mortes por fome e sede que se sucediam empurravam multidões para as cidades em busca de alívio, às vezes assaltando comércios e armazéns em sua passagem. O governo do presidente Itamar Franco (1992-1995) tentava conter os desesperados oferecendo alguns alimentos e trabalho temporário nas chamadas “frentes de emergência”. “Eles vinham dispostos à guerra”, lembrou Juvenal Ferraz, na época presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Ouricuri, município cuja população era 70% de origem camponesa, quando a média nacional chegava a apenas 25%.

No Nordeste, a reiteração de tragédias climáticas e o fracasso de políticas de “obras contra a seca”, com a construção de represas, estradas e sistemas de irrigação, pediam urgência na busca de novas soluções. Entretanto, apenas uma década depois foi implantada uma alternativa efetiva. A Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede de mais de 700 organizações sociais, adotou o caminho da “convivência com o semiárido”, espalhando cisternas e outras formas de coletar água da chuva em pequenas unidades familiares e comunitárias.

O governo, por sua vez, iniciou em 2007 um gigantesco projeto “contra a seca”, a transposição artificial das águas do Rio São Francisco, para abastecer 30 represas e perenizar vários rios que secam por temporadas. A obra, uma vez acabada, beneficiará 12 milhões de pessoas que vivem em 390 municípios dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, os mais afetados pelas secas, garantindo o abastecimento a algumas das grandes cidades e centenas de pequenas e médias, segundo o Ministério de Integração Nacional, responsável pelo projeto.

A oferta adicional permitirá melhor gestão dos recursos hídricos no Nordeste e estimulará o desenvolvimento econômico do interior da região, desviando apenas 1,4% do fluxo do São Francisco, argumentou o governo, em resposta às críticas que o projeto desperta. Contudo, a situação no Nordeste semiárido já mudou. Os pequenos agricultores e trabalhadores rurais deixaram de ser tão vulneráveis às secas, segundo Ferraz. A do ano passado foi em muitas partes mais intensa do que a de 1993 e não se repetiu a fome daquela época, lembrou.

Isso se deve aos programas sociais como o Bolsa Família, que ajuda 13 milhões de famílias pobres, metade delas no Nordeste. Também graças às tecnologias de armazenagem da água da chuva, explicou Ferraz. “A fome desapareceu, já não é permanente”, acrescentou o sindicalista. Iniciado em 2003 pela ASA, o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) já beneficiou, até o final de julho deste ano, 351.140 famílias com o sistema que leva a água caída no telhado das casas para um depósito feito com placas de concreto, com capacidade para 16 mil litros. É água potável para beber e cozinhar.

As cisternas instaladas com apoio dos governos locais e de outras instituições já passaram de meio milhão, segundo Paulo Pedro de Carvalho, coordenador-geral da Caatinga, uma organização não governamental com sede em Ouricuri e dedicada ao desenvolvimento rural sustentável nas proximidades da Meseta do Araripe, no oeste de Pernambuco. A Caatinga “ajudou muito” a superar a crise de 1993 em Ouricuri, reconheceu Ferraz, que, “sem deixar o sindicalismo”, se incorporou a essa organização para espalhar cisternas. Ultimamente promove sua construção em escolas, para garantir água potável aos alunos e incentivar conhecimentos sobre a realidade do semiárido e temas hídricos.

“Vi muitas meninas e meninos chorando de sede e mães sofrendo por não terem água para cozinhar”, recordou Ferraz, destacando que alguns não acreditam na eficácia das cisternas até elas melhorarem muito a vida de suas famílias. “É uma pena que os governos não apoiem o programa como gostaríamos”, prosseguiu. O governo federal financiou cerca de três quartos das cisternas construídas pela ASA, por intermédio do Ministério de Desenvolvimento Social, mas com recursos bem abaixo do necessário para a meta de 1 milhão de cisternas em cinco anos, cumprida em apenas 35% em oito anos.

“É um mistério Lula não ter abraçado o programa da ASA, atendendo sua sensibilidade de ter nascido no Nordeste, filho de uma família que emigrou para São Paulo quando ele era criança, fugindo da pobreza e da seca”, disse Jean Carlos Medeiros, coordenador do P1MC. Lula impôs políticas que beneficiaram os pobres, especialmente os nordestinos, mas na questão hídrica deu prioridade à transposição do São Francisco, uma ideia em discussão desde o século XIX, que só por sua decisão finalmente começa a se concretizar.

O projeto custará R$ 6,85 bilhões, informou em agosto o Ministério da Integração Nacional, admitindo aumento de 36% sobre o orçamento inicial. Além disso, as obras avançam lentamente, com alguns trechos paralisados. Sua conclusão, inicialmente prevista para 2010, foi adiada, no mínimo, para 2014. “É um retrocesso sobre a convivência com o semiárido, que hoje se reconhece como caminho para uma solução efetiva dos problemas sociais do Nordeste”, definiu Alba Cavalcanti, coordenadora adjunta de outro programa da ASA, de coleta de água da chuva para irrigar hortas

A transposição constitui uma brutal intervenção na natureza, somando 518 quilômetros de canais mais 42 aquedutos, cinco túneis, 30 represas e nove estações de bombeamento de água a centenas de metros de altura. No total são 713 quilômetros de obras em dois eixos. No entanto, essa gigantesca obra pode não beneficiar a chamada “população difusa”, como os camponeses do semiárido, os mais pobres e afetados pelas secas periódicas, que no passado viam a emigração como única saída.

Em Ouricuri, por exemplo, seus 74.526 habitantes recenseados em 1991 baixaram para 56.733 em 2000, devido a várias secas na década de 1990. A recuperação se refletiu no censo de 2010, com 64.358 habitantes. “Conviver com o semiárido é mais do que ter água; compreende também valorizar a terra, ter orgulho de ser nordestino, sentir-se capaz de viver ‘em minha terra’, e não um cidadão inferior”, concluiu Alba Cavalcanti.

Por Mário Osava, da IPS (Envolverde)

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